PALÍNDROMO


da             pedra
à                cinza
ao                  pó
à                    luz



por Miguel Oliva Teles
(texto publicado pela edições cifose
e partilhado com o público no final das apresentações de “Cinza”,
espetáculo de Nicole Gomes no TBA - Lisboa)


Não sei como começa, quando cheguei já havia coisas. E estavam dispostas assim: no centro um estrado quadrado coberto de um linóleo negro. A um canto um amontoado de pedras. O público sentado em volta. Entra Nicole Gomes e Bárbara Cordeiro e tomam as duas o chão, ao lado daquele canto de escombros. 

Nicole empurra. Bárbara também. As mãos de uma e as mãos da outra pressionam a superfície das pedras, pele sobre arestas. Os braços esticam, as costas dobram e os joelhos arrastam no chão. Bárbara empurra. Nicole também. Começam num ponto do quadrado e terminam no outro, diagonalmente oposto, levando com elas detritos de um para o outro lado. E chegando à borda do linóleo-quadrado, param e algumas pedras caem para fora da margem. A partir daqui: repetição. 


gastar o gesto
habitar o vazio



Em psicologia existe um conceito chamado “saciação semântica”. É um fenómeno que muites já terão experimentado: repetir uma palavra a tal ponto que ela perca o significado. Pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra. Viram? Não sei, na verdade, o que há de saciedade nesta inusitada situação. A repetição incessante da palavra gera um estranho desgaste que a consome, abrindo com o som que lhe sobra um espaço vazio, um lugar pré-semântico que é anterior à própria linguagem.

Em “Cinza”, Nicole e Bárbara gastam não uma palavra, mas um gesto. Nicole empurra. Bárbara também. As pedras correm linóleo. E chegando à margem, algumas caem. Aos poucos, como duas sísifas do linóleo, deste gesto que repetem repetem repetem repetem, vai sobrando um movimento estranhamente vago. Como a palavra que repetimos até à exaustão e que se torna poema na boca, também o seu gesto é exaurido, deixando assim um vazio, uma espécie de absurdo que preenche o espaço na sua dilatada vacuidade. 

Bárbara empurra. Nicole também. As pedras correm linóleo. E chegando à margem, algumas caem. Mas num vazio há tanto falta como abertura. Da entropia deste desgaste surge não uma experiência de saciedade (de abundância ou satisfação), mas tampouco a acédia ou o desespero. A experiência é a de um lugar contraditório onde perda e potência estão juntas, onde o espanto e a inquietação se confundem e onde uma certa inocência e entusiasmo convivem com o absurdo que se abre. 

“Não existe, propriamente, repetição. O que existe é insistência” [1]. O corpo de quem assiste a Nicole e Bárbara (falo pelo menos do meu, não posso falar dos outros) experimenta essa contradição. Há uma parte dele que relaxa - como dizendo “a partir daqui é sempre o mesmo” - e uma outra que fica tensa - como se dissesse “que estranha potência é esta?”, como se esperasse de repente que qualquer coisa pudesse acontecer. O corpo de quem assiste fica inclinado entre as costas da cadeira e o centro do espaço, parecendo-lhe afinal, que entre cada começo e cada fim do seu gesto repetido e desgastado, Nicole e Bárbara não empurram sempre o mesmo, mas também algo novo, que sugere e suscita diferença. O desfazimento vira então desfaçatez. A desordem, um berço estranho de luz. E o vazio um lugar de transformação.



cinza é uma cor
e é o que fica
depois do fogo



Nicole empurra. Bárbara também. A certa altura fecho os olhos. Não, apagaram as luzes. Fica o escuro e sobra o som. Sobra o som que se torna um resto daquele gesto que se vem gastando e continua. O gesto, no escuro, torna-se ainda menos gesto, ainda mais rastro, desfazendo-se mais ainda na sua repetição. Bárbara empurra. Nicole também. Agora é maior ainda o vazio, o absurdo. Mas é, também, maior, essa coisa estranha (e nova) que o preenche e cresce. É como se aquela potência que se intuía  se intumescesse agora e fizesse surgir um prurido no corpo - meio tenso e meio solto - e que o fizesse inclinar-se mais ainda para aquela abertura. Agora já não há Nicole nem há Bárbara, nem pedras nem linóleo, há o som de um arrasto e um chocalhar contínuo que de quando em quando se faz mais seco e drástico (serão as pedras a cair na margem ou alguém que se acomoda, que se contorciona, desconfortável, na cadeira?). 

Ficamos assim por um tempo. E há então um momento em que tudo pára. Nicole e Bárbara levantam-se e saem. Fica nada. Não sei se param pelo cansaço ou porque as pedras se acabam. Talvez nenhuma destas hipóteses: elas tinham ainda fôlego e havia ainda pedras no linóleo, mesmo que pequenas, que podiam ser arrastadas. A certo momento as duas param, levantam-se e saem. Quase não as vemos, está escuro, mas ouvimos: ouvimos tanto o silêncio daquele som que cessou (e que já foi gesto) como o movimento leve da sua saída. Nicole e Bárbara saem por onde entraram, entram por onde saíram. Viram?



palindromo
sêmola de pedra
flor de cinza



Palíndromo é uma sequência que se lê da mesma forma tanto num sentido como no outro. Pode ser um número, uma palavra, um trecho de música, um gesto. Para a frente e para trás, é então sempre a mesma coisa? Talvez não. Como no gesto repetido de “Cinza”, na aparente circularidade de um palíndromo, reside a potência do desgaste que, pelo caos, abre o sentido. Há um poder encantatório que quebra a monotonia e a falácia do movimento linear [2]. Numa capicua, como numa pescadinha-de-rabo-na-boca, a cabeça e a cauda não seguem uma para a outra, elas cruzam-se, encontram-se. E é deste encontro que surge a transformação.

Depois de saírem Nicole e Bárbara, fica um breve silêncio na sala - como que um suspiro. E talvez até os corpos se recostem e relaxem perante a ideia de um fim. Mas o fim não é último na poética de um palíndromo. Depois de saírem, depois do suspiro, um feixe de luz inclinado e fino aparece diagonalmente no espaço, cruzando o caminho do linóleo como uma lâmina do teto ao chão. De cada lado da lâmina levitam, oscilam, rodopiam, lentamente, pequenos pontículos de poeira, pequenos rodopios de cinza. 

Àquela luz ilumina-se o rastro de um trabalho. Acende-se a ausência de Nicole e Bárbara. Torna-se visível o gesto que já se via, que se deixara de ver, o gesto obstinado e insistente de um desejo. E este desejo - como todos? - não é circular, como se nada mudasse entre um conjunto de pedras que se empurram e o outro que o segue, como se a cada fim sucedesse apenas o início que já o antecede. O desejo não é uma roda - é uma serpentina carnavalesca que se desprende para a frente, libertando-se no ar. Cada começo novo desenrolando-se bem perto do fim que o precede, mas seguindo já para outro lugar. Como o fôlego tímido, mas novo, que amanhece depois do fim de uma festa. 

Àquela luz, naquele escuro, iluminado o pó dos seus gestos de pedra, Nicole e Bárbara não devolvem o sentido que esvaziaram. Elas denunciam apenas um vestígio, uma “manifestação de uma proximidade, por mais longe que possa estar aquilo que a deixou” [3]. Elas denunciam um rastro, algo que antecede o gesto e que existe depois dele: o trabalho presente e imediato de um desejo: a potência transformadora de um palíndromo. Um poema de luz-cinza no eixo interminável de uma serpentina. 

Não sei como “Cinza” acaba. Quando me fui embora ainda havia coisas. Se calhar não houve um fim. E, menos ainda, propósito. Houve a exaustão de um gesto. A luz, revelando uma poética. E o pó, como matéria de palíndromo.





[1] a partir de Gertrude Stein  em “Portratis and Repetition” em Lectures in America (Virago, 1988) (tradução do autor)
[2] em The Illusion of an End (Polity Press, 1984) Jean Baudrillard aborda uma noção do fim (da história, do social, do desejo, etc) considerado num tempo linear. Desta noção ilusória resultam, para o fiólosofo, tanto uma hiper-aceleração como inércia, ambas posturas acríticas que antecipam esse fim. Perante isto, sugere o palíndromo como poética que desestabiliza essa noção, irrompendo a ilusão do linear com uma quasi-circularidade caótica de um tempo criativo, presente e vivo.
[3] a partir do conceito de vestígio (e aura) de Walter Benjamin.
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