GRAVIDADE E ENTREGA

por Miguel Oliva Teles


A situação: mãos que se aproximam sem se poderem tocar.

Os braços, estendidos, sustentam-nas em proximidade e ancoram os dedos que levitam na (im)possibilidade do toque. Quase imóveis (não estão), estas mãos suportam entre elas uma premência e insistem num quasi-contacto: numa intangibilidade que arrisca o tangente: numa manutenção de um ínfimo espaço de entre. Parecem imóveis. Não estão.

Pequenas gotículas de suor acumulam-se-lhes na pele, deixando a cútis levemente embaciada, revelando a impressão húmida de um afinco, a marca indelével de uma tensão. Os dedos (terminais, dóceis, intensos) movem-se em ténues “repentinamentos”: leves e delicados, sacádicos ou coreiformes, com a aparência de um despropósito, mas se olhados a um perto-longe, sugerindo, afinal, resposta.

As perguntas: que força move estas mãos e as mantém nesta a-tensão? E o que é esse movimento, que trabalho muscular é esse tão imperceptível e que suporta as mãos na proximidade?

GRAVIDADE

É do grego τόνος (tonos) – estiramento ou tensão – que vem a designação de tónus muscular, isto é, o estado de permanente contração de um músculo. Este tónus muscular, além de sustentar a postura (ou a ilusão de um repouso) e de permitir os movimentos, pode ser também um tónus afetivo – uma tensão de fundo que é a manifestação no corpo dos estados psíquicos [1]. A exemplo: se vamos tristes, logo o corpo se encurva. Se vamos irritadxs, contrariadxs, a postura fica rija e os gestos ríspidos. Se vamos com medo, o corpo recolhe e se relaxamos, expande. Assim se vê como o tónus muscular, além de essencial à posição e aos gestos, é também uma componente fundamental da nossa experiência afetiva.

Para Daniel Stern, o tónus muscular não só tem esta importância como é mesmo a primeira forma da nossa vida afetiva. Ao estudar o desenvolvimento da criança, este psicanalista concluiu que, nos primeiros anos de vida, um bebé espelha e responde através do corpo os afetos que recebe de quem o cuida. Mesmo antes da capacidade de discurso e da linguagem verbal, mesmo antes da possibilidade da locomoção, há variações do tónus muscular que a criança usa para comunicar o seu estado aos seus pares [2]. Poder-se-ia dizer, por isso: É primeiro com o corpo que sentimos o outro.

Entendi. E volto às mãos. Vejo agora como estrondos aqueles pequenos espasmos dos dedos inquietos. Como grandes arcos esses esforços do pulso, do braço e do ombro. Não estará neste esforço um vestígio resgatado dessa primeira vivência afetiva e relacional? Não será esta dança um diálogo que procura de volta o somático, o epidérmico e o quinestésico de um toque interditado?


Foi também ao interessar-se no conceito de diálogo afetivo e tónico – como o que estas mãos parecem trocar – que Steve Paxton (coreógrafo e performer americano) se debruçou sobre os gestos e movimentos imperceptíveis a que estão sujeitos os corpos perante algo tão constante e inevitável, quanto esquecido ou ignorado: a gravidade.

“This is standing. Let your buttocks be heavy (…) Feel the spine rising through the shoulders and up to support the skull. At the center of standing, you observe some small movements”.


Eram estas as primeiras instruções de Paxton em Stand: uma espécie de aula onde propunha a quem participava uma prática da imobilidade, meditação e observação: de pé, relaxando os corpos na posição vertical, os participantes observavam os mínimos movimentos que surgiam quando suspendiam a sua ação voluntária. Com este exercício, Paxton pretendia revelar a existência de uma “sinfonia de reflexos”, uma pequena dança de “movimentos que não são nossos”, através dos quais somos movidos e respondemos à gravidade [3]. Desta forma, compreendia e mostrava que a vivência com a gravidade é também um constante diálogo, uma relação cujos “termos nos condicionam para o resto das nossas vidas”, uma atração contínua e cujo “efeito em todos os nossos tecidos, na água mesma que constitui as nossas células”, “produz um sentido geral do ‘eu’, tanto em movimento como parado”. Desta forma, afirmava: como o afeto que desde a infância nos incita a um tónus, “a gravidade não diz, exorta ou dita. A gravidade posiciona” [4].

Esta ideia da inexorabilidade de uma força a que estamos sujeitos, que nos posiciona e que nos exige uma resposta, reverbera uma curiosa familiaridade com o pensamento de Emmanuel Levinas, filósofo francês do século XX. Para ele, o outro é também uma força que nos interpela. Como se fosse um rosto – duro, frontal e inescapável – o outro lança-nos um apelo e exorta-nos, exigindo-nos retorno. Assim, desde que surgimos no mundo, à semelhança da gravidade, estamos rodeados por rostos que nos chamam e “cujos termos nos condicionam para o resto das nossas vidas”. Para Levinas, esta interpelação abre também um diálogo – fruto da nossa responsabilidade para responder ao outro, a esse rosto a quem não podemos nunca virar a cara, porque o silêncio seria já resposta.

Este espaço de relação que se abre, este entre onde se está pela chamada permanente do outro, é também o fundamento da subjetividade, aquilo que define o eu, o conjunto das nossas respostas. Estamos em pé pela gravidade. E somos sujeitos pelo outro, que nos impele e nos clama.

Vendo aquelas mãos enfrentadas, nenhuma delas foge, nenhuma delas escapa. Que força é essa que as move e as mantém nesta tonicidade? É o afeto, o outro, uma gravidade.

ENTREGA

Em Ausência [5], Byung Chul-Han fala-nos da dança oriental como sendo pró-gravítica – a favor da gravidade. Como exemplos, evoca-nos a “dança dos monges” budistas coreanos – seungmu – com o seu “ritmo extremamente longo” e “largas linhas, sobretudo horizontais”, traduzindo o “vazio e a ausência em movimento” e também o Nō, teatro-dança japonês, no qual os atores não se esforçam em virtuosismos, mas antes derramam um “passo deslizante”, com a “ponta do pé apenas alçada”. Numa e no outro não há movimento vertical nem “antigravidade heróica a interromper a linha horizontal”. Em ambas as práticas os corpos entregam-se, dão-se à gravidade, refletindo uma inclinação para existir na ausência, num esquecimento do si, numa habitação leve de um vazio.

Também Paxton, nas suas reflexões sobre a gravidade e o corpo, seguiria um caminho pró-gravítico. Ao falar, numa entrevista, sobre Stand, viria a considerar este método como uma prática de “destreinamento”, como uma forma de “nos livrarmos das máscaras que temos”, de “descascarmos as camadas sociais, históricas, estilísticas e formalistas do corpo”. De certa forma, como um desfazimento do eu.

Paxton procuraria, então, despir progressivamente a máscara da subjectividade e revelar uma estática de fundo – tónica, afetiva e dialógica – que mostrava como estamos primitivamente interligados e limitados pela gravidade.  “Não sou eu que me movimento, mas o universo ou o entorno” – disse – e “a única coisa que posso fazer é deixar que este movimento aconteça [e] acolhê-lo com amor”. Seguindo este princípio de entrega à gravidade, Paxton contribuiria então para a criação de uma dança-desporto ou arte-do-movimento que propunha uma declinação do próprio peso para um contacto (“o peso de um dançarino só é seu para dar”) e para uma relação entre o próprio corpo e o do outro num espaço gravítico de suporte e abraço. Na Contacto Improvisação a proposta era a seguinte: “dois corpos (reduzidos à sua qualidade como massas) entram em contacto … e deixam-se mover sem movimentos pré-concebidos (improvisam)”, sendo “as suas interações governadas por uma única regra, que consiste em … ficar em contacto”.




Nesta prática encontra-se, assim, a generosidade efetuada no corpo, um esforço que procura continuamente o eixo fugitivo de um terceiro chão, um estar-junto, um espaço onde se abrem o paradoxo da fronteira (que é ao mesmo tempo diferenciação e proximidade) e um vazio onde se dá o encontro e o fulcro reflexivo e subjetivante da relação.

Levinas, quando nos descreve o encontro com o rosto do outro considera-o como uma demanda, como uma mão aberta que pede e que ordena. Perante este apelo, o eu não escapa a um retorno, a uma responsus-abilidade, à capacidade de responder de volta. Como um monge budista ou um ator No, como um corpo em Contacto-Improvisação ou como estas mãos, o eu cede e coloca-se então num espaço de intervalo, de diálogo e de relação. É com esta resposta, com esta entrega, que se inverte a hierarquia egológica e o imperialismo narcísico que dão sempre primazia ao eu sobre o outro; que se destabiliza o eu na sua auto-suficiência presumida, no seu existir para-si-mesmo; que se interrompea sua inclinação para o si, substituindo-apor um impulso para o mundo.

É neste movimento de declinação, na resposta inexorável a um apelo, que está, para Levinas, o fundamento da ética. Nele o eu torna-se um “sub-jectus, debaixo do peso do universo, responsável por tudo” [6] e é nesta cedência que ele floresce no toque, no potencial infinito de uma carícia: um contacto com o outro que nem arrebata nem funde, mas que revela a riqueza porosa e a doce vulnerabilidade do eu na relação.

Olhando as mãos no seu exercício de proximidade, não sei em qual delas é maior uma certa impermanência. Como se o seu esforço fosse também o de uma ausência. Rasteiras, insidiosas e horizontais, elas levitam (n)um espaço onde o vazio reverbera, onde não há uma direção, mas um eixo que varia.
O que é então o seu movimento? O mesmo que perante a força da gravidade e a presença do outro se faz horizontal e indelével, como a dança tónica do vazio e da ausência. Que cede e vive num eixo nómada que é o ínfimo-infinito do toque, a insistência num contacto e na partilha recíproca de um peso que não lhes pertence. Que se faz generosidade corpórea, dádiva sentida primeiro no corpo e que não só estabelece o comum como o eu, na forma desta abertura [10]. Que é a imanência de um espaço de relação, de um entre, de um comum. Entre as mãos que se suportam côncavo-convexas: o movimento é de entrega.




[1] André Lapierre, Da Psicomotricidade Relacional à Análise Corporal da Relação. Curitiba. Ed. UFPR/CIAR.
[2] Daniel N. Stern, “On Kinetic Analysis: A Discussion with Daniel N. Stern”, The Drama Review 17 (1973) 114-126
[3] Nancy Patrick Smith, “A study in Gravity” em Steve Paxton: Drafting Interior Techniques, ed. Romain Bigé (Lisboa: Culturgest, 2019) 89-104.
[4] Steve Paxton, Gravity (Brussels: Contredance Editions, 2018)
[5] Byung Chul Han, Ausencia (Madrid: Caja Negra Editora, 2017)
[6] David Williams, “Working (in) the in-between: contact improvisation as an ethical practice”, Writings on Dance 15 (1996): 22-37
[7]  Rosalyin Diprose. Corporeal generosity: on giving with Nietzsche, Merleau-ponty, and Levinas (New York: State University of New York Press, 2002)



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