ELEGIAS PORVIR

por Miguel Oliva Teles e Daniel Pizamiglio
(texto publicado no nº3 do jornal Coreia - setembro 2020)



Em 2019 surge uma ameaça que põe em causa não só cada um de nós mas também aquilo que nos define e entremeia: a relação. Perante um vírus que se propaga usando como veículo os nossos afetos e o âmago do nosso viver em comunidade, controlá-lo – ou viver com ele – é refrear esses mesmos afetos, suprimir essa vivência comunitária, sanitizar a relação. Em tal estado de contingência, além dos entes queridos que partem, das desigualdades que se adensam e da maior precarização das vidas, há ainda uma outra perda: a forma como nos relacionávamos não é mais possível. A pandemia persiste. Mas já vai sendo feita a incómoda pergunta: mesmo que receda, não permanecerá algum deste pudor, algum deste recato, algum deste receio que assombra o nosso viver-junto? Há, por isso, uma perda. E um luto?

“Se a tristeza admite companhia, revejam as vossas dores contemplando as minhas” [1]. É Margaret, rainha anciã em Ricardo III, que, sentando-se com as outras rainhas, o diz. Nesta tragédia, Ricardo, cego pelo poder da coroa, distribui morte, dor e traição por todos à sua volta. As dores e as perdas são múltiplas, a violência ininterrupta e o luto – como o que estas rainhas partilham – converte a dor em ira, revolta e vingança. Às feridas abertas elas reagem com dor, repulsa e agressão. Sentam-se juntas, mas o olhar está virado para dentro de cada uma. Há, tantas vezes, nas tragédias e no mundo, uma tentativa ensimesmada de fechar a ferida, de resgatar uma existência íntegra, impermeável, sustentável apenas por si.

De facto, a dor e a perda realçam, de forma violenta e abrupta, a nossa vulnerabilidade. Talvez até seja por isso possível, como supõe Judith Butler, “apelar a um nós, porque todos temos alguma noção do que é ter perdido”. Mas, perante a perda – e não fazendo a dor útil –, não poderá a perceção desta vulnerabilidade aflorar afinal os laços que nos unem, a nossa interdependência fundamental, a nossa existência em relação? Perante a perda – e não fazendo a dor fútil – não poderá o luto ser uma resposta em que essa vulnerabilidade (diferentemente vivida e distribuída) seja protegida e cuidada? Fazer o luto seria assim ficar na ferida, “insistindo na linha que tem de ser caminhada entre cuidá-la e tentar diminuí-la”. “Procurando uma base para a comunidade nestas condições” [2]. Talvez Creonte reconhecesse esta força política quando proibiu, às portas da sua cidade, certas cerimónias de luto. Talvez também por isso não o ouviu Antígona.

Entre abril e junho de 2020, logo após o primeiro confinamento em Portugal, Daniel Pizamiglio iniciou uma série de encontros. Chamando amigxs, colegxs e conhecidxs, encontrou-se com cada pessoa (no total, vinte e nove) em vários lugares de Lisboa: um estúdio de dança, os jardins arejados da cidade, as suas casas, a calçada de uma rua pouco movimentada e o interior de um carro estacionado. Como espectadores: o rio, os pássaros, o mofo de uma parede ao canto, as crianças num parque. Os intervenientes: Daniel e xs outrxs, cada um abrindo a sua ferida, abrindo-se um ao outro, abrindo o encontro [3]. Precisamente quando este era tanto uma ameaça como aquilo que estava ameaçado, o que se pretendia era resgatar os afetos constrangidos pelas medidas sanitárias. Olhando para trás, parecia haver neste convite algo como no de Margaret: vem, senta-te comigo, que a tristeza admite, sim, companhia. Uma dissidência como a de Antígona: não deixemos esta perda calada, que ela reverbera demasiado grave. E ainda uma outra insistência: no comum, no encontro e no cuidar de uma vulnerabilidade que se entende conjunta.

“Fazer o luto” É assim que o dizemos, deixando explícito que é um processo. Mas há algo mais nesta formulação: o luto, como vivência de uma perda, não é só um ato, nem meramente um processo psíquico que acontece por si. É um fazimento, um acontecimento que se performa. Desde a Antiguidade até aos nossos dias, mostram-no as carpideiras, derramando todo o seu pathos em choro sobre o corpo do defunto. Pepe Espaliú, artista espanhol que viveu com VIH-SIDA – outra pandemia na qual as perdas são desiguais e na qual o preconceito e o nojo desumanizam tanto as vítimas como as dores dos que sobrevivem – realizou, em 1992, uma performance em que o próprio artista é levado pela rua, sentado nos braços unidos de amigos, conhecidos e demais pessoas. Pepe era assim carregado e cuidado – Car(ry)ing –, a sua perda ressignificada, politizada; os olhos postos na ferida, na sua vulnerabilidade e na de todos os que o carregavam. Um luto liberto do estigma, vivendo a dor de forma aberta e compartida.

Também para Jacques Derrida o luto é algo que se performa e que nos orienta para o futuro. Segundo o filósofo, fazer o luto não é “trazer o passado à memória”, não é isolar o que perdemos numa cripta fechada, cristalizando o perdido num retrato ao qual voltamos numa rememoração nostálgica, passiva e solipsa. Ao invés, o luto é abrigar em nós, numa cripta de portas e janelas abertas, os traços ou os vestígios do que se perde. É ficarmos num diálogo contínuo com o que remanesce. Numa rememoração afirmativa e para fora, criativa, como um rastro-lastro que nos engaja não com o que passou, mas com o porvir. Ativar esta memória instiga-nos a agir, a falar o que perdemos. Ou a deixar que o que perdemos fale por si [4]. Era desta forma que Derrida enlutava a perda de cada amigo, colega e mentor que partia, relendo publicamente os seus textos, retendo os traços das suas vidas e dos seus pensamentos, fazendo deles um novo pensamento-texto-leitura: uma performance-elegia [5].

Nessa série de encontros intitulada “POR FAVOR, OLHAR COMO SE FOSSE A PRIMEIRA E ÚLTIMA VEZ”, o Daniel propunha, como ponto de partida, pensar e ativar um olhar primeiro e último. Ficar nessa estranha contradição duma despedida que se espanta e duma curiosidade que já aceita um fim. O que é uma primeira vez? “Abrir espaço às (im)possibilidades de um outro”? Desconhecer? “Uma aproximação lenta e às escuras”? E a última? Um certo “sentido de agonia: a angústia de uma perda” […] [Apercebermo-nos] a cada momento do que não fica”? [6]. A partir do pensamento e ativação deste olhar, seguia-se um exercício em que as mãos exploravam a insistência num toque que se tornara interdito. Em que as extremidades meditavam na tensão entre a distância necessária e uma proximidade que se busca. Em que a polpa dos dedos suportavam, juntas, um vazio.

No final de cada encontro, o Daniel voltava a casa, sentava-se e contava-me. Como se haviam encontrado aquelas mãos, que tensões as mantinham e as afastavam. Depois, outras vezes só mais tarde, abria o caderno em que anotara impressões, frases, materiais, imagens e hipóteses rascunhadas. Os traços de um encontro. Juntos, agora, encaramos este pensamento-ativação e este esforço das mãos e do olhar como o trabalho da ferida, a performance do luto. Vemos procura e ressignificação, uma insistência no encontro, um sentar juntos. Como se tivessem sido feitas as perguntas: “O que perdemos?” “E o que resta?”. Ativar, ler e sustentar estes restos é continuar o luto. Assim, da memória da experiência, das imagens captadas em vídeo [7] e dos apontamentos no pequeno caderno surgem estes traços que levantamos juntos. São estas as nossas elegias viradas para o futuro:



O OUTRO É GRAVIDADE A QUEM O CORPO ENTREGA O PESO
(com Julián Pacomio)

NÃO HÁ PROJETO SENÃO ESTE: SUPORTAR E DEIXAR ABERTO
(com Alina Ruiz Folini)

ATENÇÃO MELANCÓLICA: CONTEMPLAR SEM POSSUIR
(com Tiago Mansilha)

AS MÃOS COMO PEDRAS E ENTRE ELAS UM TORNADO
(com Ana Rita Teodoro)

TENTAR TRANSPORTAR O FOGO
(com Acauã El_Bandida Sereya)

NÃO VEJO DIFERENÇA ENTRE UM APERTO DE MÃO E UM POEMA
(com Gisela Casimiro)

RECUPERAR UM FIM É ABRIR O FUTURO
(com Paolo Gorgoni)

PALÍNDROMO: A POTÊNCIA INICIADORA DO FIM
(Sílvia Pinto Coelho)

O TOQUE NÃO DEPENDE DO TOQUE
(com Gabriela Giffoni)

O ESPANTO E O MEDO
(com Telma João Santos)

OS OLHOS DAS MÃOS VAGUEIAM ENTRE O DENTRO E O FORA
(com Sónia Baptista)

RECONHECER A ÚLTIMA VEZ LEVA À PRIMEIRA
(com Matheus Martins)

TATEANDO OS INTERVALOS DO NÃO-SABER
(com Liliana Coutinho)

NO ENCONTRO SURGE A TERCEIRA IMAGEM
(com Joana Levi)

A IDEIA DO FIM NUNCA É COMO NO FIM
(com Jessica Guez)

A ÚLTIMA VEZ NÃO COMO UM EVENTO, MAS COMO UM MISTÉRIO QUE DURA
(com Leonardo Mouramateus)

COMO SE DEIXA UMA LEVE AUSÊNCIA?
(com António Alvarenga)

COMO FABRICAR UM “JAMAIS VU”?
(com Isis Andreatta)

FAZER DA ÚLTIMA VEZ VERBO
(com Rafaela Cardeal)

RECONHECER A SOMBRA DA NOSSA PRESENÇA
(com Carlos Manuel Oliveira)

ACABAR COM A PRESSA E CONSTRUIR A ESCUTA
(com Carolina Campos)

ANSIAMOS QUE FIQUE ANSIAMOS QUE PASSE
(com Mauro Soares)

ENTRE O PRINCÍPIO E O FIM: A EXPERIÊNCIA DA FALÉSIA
(com João Fiadeiro)

NADA VENCE NADA
(com André e. Teodósio)

COMO DEMORAR NO QUE PASSA?
(com Felipe Ribeiro)

MEDITAR GASTANDO O GESTO
(com João dos Santos Martins)

COMO MATAR UM SISTEMA EM NÓS SEM QUE ISSO NOS MATE?
(com Fernanda Eugénio)

A TERNURA ÀS VEZES ULTRAPASSA O MEDO
(com Duarte Bénard da Costa)

ABRIR MÃO E ACOLHER
(com Alexandre Pereira)





[1] William Shakespeare, Richard III, ed. Rafael Buffel (New Haven: Yale University Press, 2008), tradução livre.
[2] Judith Butler, “Violence, Mourning, Politics”, em Precarious Life (Londres e Nova Iorque: Verso, 2004), tradução livre.
[3] Ver O encontro é uma ferida (excerto da conferência-performance Secalharidade de João Fiadeiro e Fernanda Eugénio), https://ladcor.files.wordpress.com/2013/06/o-encontro-c3a9-uma-ferida.pdf.
[4] Ver Joan Kirkby, “Remembrance of the Future: Derrida on Mourning”, Social Semiotics, 16 (2006): 461-472.
[5] Ver Jacques Derrida. The Works of Mourning, ed. Pascale-Anne Brault e Michael Naas (Chicago: University of Chicago Press, 2003), livro que edita o conjunto destas elegias.
[6] Excertos do convite enviado pelo Daniel a cada participante.
[7] Estas imagens foram montadas num filme apresentado em live-streaming no evento Recolher Obrigatório, nos dias 18 e 19 de dezembro de 2020, organizado pelo Teatro do Bairro Alto (Lisboa).

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