ATENÇÃO E MELANCOLIA

por Miguel Oliva Teles



ATENÇÃO


Quando nos fala do seu conceito de atenção [1], Simone Weil parece propor-nos um tipo de olhar e de escuta que, se praticado sempre que nos dirigimos a outrem, nos aproximaria mais da justiça. Diz-nos: “a atenção é a forma mais pura e mais rara de generosidade” [2]. Imperando, hoje, a aceleração do tempo e a ânsia do empreendedorismo narcísico, valeria, talvez, a pena revê-lo.

Uma grande parte do mundo já era um conjunto de egos desligados entre si, quando, em resultado da pandemia por COVID-19, surgiu a necessidade sanitária de um confinamento em massa. Nessa altura, alguns olharam este momento como a oportunidade para um novo vagar [3] e para a possibilidade de nos tornarmos - paradoxalmente - mais próximos - como se se regenerasse, de alguma forma, um sentido de comunidade e cuidado. Cedo se notou o engano. Naqueles mesmo, confinamos também connosco a mesma impaciência de antes, a mesma pressa e ânsia de produtividade [4]. Para dentro de casa (e de nós mesmos) trouxemos também a primazia da sobrevida, o mesmo esforço positivo do eu que se vinca e se essencializa e que reforça os seus limites fechando-se e separando-se dos outres [5]. 

Que impacto terá, então, a desatenção na nossa relação com outrem? O que restará da empatia em olhares que não demoram? Importará, talvez, como ponto de partida, relembrarmos o que está sob ameaça. O que queremos dizer quando falamos de atenção? Como poderemos retomá-la, compreendê-la novamente e ativá-la?

*


Logo após o final de um primeiro confinamento, duas pessoas encontram-se [6]. Param (quebrando a pressa) e juntam-se (tentando sair delas mesmas).


O que é a atenção?
E como a recuperamos?


Parece que são elas mesmas que perguntam, enquanto se entregam a um exercício que procura sustentar as mãos de ambas à mínima distância possível, sem que se toquem ainda.

Neste seu exercício (em que procuram-fazendo e fazem-procurando), poderia parecer, à primeira vista, que, nesta sua proximidade inconclusiva, as mãos tateiam um vazio e derivam. Mas logo se torna perceptível uma certa escuta e parece até que respondem uma à outra, através do meio tenso e reverberante que partilham.

Na sua dança de distância e instância, na sua tensão viva de silêncio e ressonâncias, é como se cada uma ouvisse da outra:

Presta atenção.


Presta atenção. Assim, na forma de um apelo. Revela-se, então para elas, como a atenção é, primeiramente, a resposta a uma interpelação.  Face a outrem - outra pessoa, entidade ou simplesmente as coisas, o mundo, um acontecimento - o sujeito afeta-se (recebe o apelo) e, em resultado dele, escolhe, decide e move-se. A ética da atenção de Weil é então uma ética da convocação. E do que se faz perante ela. 

O carácter dessa escolha (dessa disposição e do movimento que ela promove) vem já expresso na ordem: Presta atenção.

Prestar        é estar ao alcance de, acomo(dar), entregar

Atentar        é tender / esticar / alongar-se para [7]


A atenção, pode dizer-se, então, o movimento de algo que se declina, que sai de si ou que se esvazia para dar espaço a outrem e permitindo que esse outrem (outra pessoa, entidade, acontecimento ou, simplesmente, o mundo) “se apresente [em toda a] sua alteridade e diferença” [1].

Mas se o ego se desfaz assim, ele desiste, ele subtrai-se  e desvincula-se, retirando-se como um mero instrumento passivo?

*


Lisa Nelson (performer, coreógrafa e investigadora), ao investigar o que está subjacente à improvisação na dança, compreendeu o papel fulcral da atenção na forma como um sujeito-corpo se relaciona com o mundo e como se posiciona perante ele. 

Através das suas Tuning Scores, Nelson torna explícito o diálogo do próprio consigo mesmo e com o que o rodeia. Nelas,  um grupo de performers/investigadores dispõe de uma série de operações (calls) - tais como “pause”, “repeat”, “reverse”, “undo”, “begin”, “end”, entre outras - cuja aplicação partilhada ilumina - para cada um e para o grupo - o papel ativo dos sentidos (atenção) na relação com os afetos que os rodeiam, os desejos que resultam desta relação e a forma como esses afetos e esses desejos se convertem (através da imaginação) num constante posicionamento do corpo no meio (movimento). O que os seus exercícios fomentam é uma atenção da atenção - uma atenciografia [8], a percepção de como prestar atenção amplia as possibilidades de resposta do sujeito para a multiplicidade virtual do que o rodeia. 

A atenção é, assim, uma escuta, mas uma escuta ativa, de quem ouve enquanto atua. É uma abertura - mas não uma que disperse ou que anule, mas - que dilata e multiplica. Para Nelson, “se estivermos atentos a todas as condições presentes poderemos fazer escolhas, o que é muito diferente de servir simplesmente de canalizador ou de ressonância das condições” [8].

Prestar atenção é, então, um esforço - um tónus - uma dança - que sustenta essa abertura e esse estar-com-o-mundo. Prestar atenção é, assim, também subjetivação: o sujeito que presta atenção não se confina em si mesmo, mas tampouco se anula - ele abre-se e subjetiva-se nessa abertura para outrem, para o mundo. Os seus limites tornam-se mais porosos, mais fluídos.

*


E um tempo da atenção, qual seria? Na aceleração da produtividade ensimesmada, o tempo torna-se medida. Serve apenas para contar aquilo que se consegue fazer para si mesmo. Mas a atenção, sendo uma disposição é algo que está fora do conseguimento e da eficácia. A atenção é uma espera. E a espera só começa, quando não há mais o que esperar [9]. A atenção é movimento lento que se dispõe para mais movimento. É um desejo que não se procura a si mesmo, nem a algo externo que produza ou consuma - é um desejo que nunca se cumpre, tornando-se potencial infinito.

O tempo da atenção é, assim, um tempo largo, desacelerado. É duração e não medida. E é o tempo da espera (qui attend) e não o da expectativa [10].

MELANCOLIA

“As aves voam sem descanso, partem
Às montanhas de novo regressam as cores do Outono
Subo e desço o cume de Hua tzu
A minha melancolia não tem fim?” [10]


Tudo o que vejo, toco e sinto já deixou de ser. No momento em que capto do mundo um objeto, o captado já não é - e quase já nem corresponde - ao que olhei, ao que foi a fonte do meu desejo. Como os pássaros de Wang Wei, o mundo e as coisas são esguios, voláteis, e voam, escapando-nos incessantemente das mãos. O que fazer com este vazio? Como tragar o assombro de não poder nunca sorver verdadeiramente o que se deseja? Como lidar com esta melancolia?

Debruço-me, primeiro, sobre ela. Diziam os gregos antigos - e a eles lhes devemos o nome - que resultava de uma acumulação desproporcional de um dos quatro humores, a negra (mélas - μέλας) bílis  (cholé - χολή). Desde então, e ao longo da sua história, a melancolia tem sido multifacetada e revestida de contraditório e mistério, tomando uma constelação de significados que reflete e influencia a cultura de cada época em que se pronuncia [12].

Seria Freud que traria para o centro do sentido da melancolia,  a noção de perda. Para ele, perante uma perda, o sujeito teria duas respostas possíveis e contraditórias. O luto, por um lado, seria encarado como uma superação da perda, como um processo psíquico em que a energia do desejo seria transferida de um objeto perdido para outro(s). Por outro lado, a melancolia, seria uma insuperação, um apego patológico ao perdido. Nela, o ego ferido replicaria o objeto perdido dentro de si e permaneceria, desajustadamente, no seu fantasma [13].

Entre um sujeito e outrem (outra pessoa, entidade ou o mundo), como entre Wang Wei e os seus pássaros efémeros, parece existir uma perda, uma falta. Esta perda, que é a sua relação com um mundo exíguo e impossuível [14], que já não é o mesmo quando o capta de forma objetiva e delimitada, dá lugar a uma estranha insatisfação. Há como que um “desapontamento perante [estes] objetos positivos, observáveis, apropriáveis e, por isso, incapazes de satisfazer o nosso desejo” [15].

Mas, o mais curioso, é que apesar dessa falta e da sua percepção, o sujeito permanece numa insistência. Esse desejo falho é um desejo que perdura: Wang Wei continua, subindo e descendo de cume ao vale e de vale ao cume e o sujeito não se desvia do mundo e persiste com ele em relação. Este apego, insistência (ou perseverança?), pode chamar-se também de melancolia. 

Então, contra Freud, ou depois dele, talvez interesse recuperar o que a melancolia tem de paradoxo e retirar-lhe esse selo de patologia. 

Será uma perda, realmente, superável? Estará a sua solução (se é que existe esse termo!) numa troca contínua e sucessiva de objetos desejados - perda ante perda, numa sucessão de desvios desafetados? E que dizer da natureza misteriosa da melancolia: a sua condição triste, mas doce e prazerosa; o seu azul estranhamente quente; o seu tanto de desalento como de resiliência que enraiza?

Para Zizek, a melancolia, é mesmo o início da filosofia [15]. Porque dessa particular insatisfação não surge uma euforia narcísica que sorva tudo enquanto não se sacie, mas uma tristeza de olhar longínquo, uma comoção, um spleen. Um manter-se, incessante e melancolicamente, na questão, na impossibilidade e no sonho. Uma vivência assumida na aceitação madura e serena que o mistério é a priori perdido. Um ficar no rastro dele que connosco resta. E no lastro que ele nos oferece, de cada vez que o eu - assombrado pela sua beleza - o procura.

ATENÇÃO MELANCÓLICA


Poder-se-ia dizer que a atenção, como essa abertura sem um foco isolado e sem o desejo de fechar, é também uma contemplação do impossível. O transe de quem presta atenção é como uma meditação profunda, da qual não se avista sequer a possibilidade de um fim. Assim, quando dois pares de mãos se atentam, existe para elas, a priori, a noção do inatingível. Não há lugar à consumação do desejo, porque o seu objeto é dado, ele mesmo, por inconsumível. Aatenção, se termina em posse não é mais atenção. Ela é, afinal, uma potência e não um conseguimento, e é na sua dimensão de impossível que lhe reside a força.

Mas então, o que manterá este esforço? Como não caem as mãos atentas num cansaço, numa desolação perante essa perda, desde o princípio, garantida? Como sustentam elas essa proximidade difícil, que não chega a permitir o toque, a possibilidade alegre de uma consumação?

Talvez, mais uma vez, a melancolia.

No seu exercício de proximidade, as mãos entregam-se a uma atenção melancólica. Oscilando reciprocamente entre posições convexas e côncavas, entre pergunta e resposta, entre apelo e dádiva, as mãos sustentam-se nesse entre (esse espaço em que não se tocam, tocando-se) que é tanto alteridade como a imanência do junto - vale e crista que se procuram sem que se alcancem, como acontece numa onda do mar.

A atenção melancólica é um ficar na ferida, na abertura e na inclinação, oscilando numa distância que se quer curta, mas que não se pode anular. É persistir na resposta a essa instrução que nos faz, persistentemente, o mundo: Presta atenção.

É olhar como se fosse a PRIMEIRA VEZ que ele surge (com essa abertura e entrega de um sujeito desprovido) e também como se fosse a ÚLTIMA (aceitando o que ele tem de inatingível e de impossuível, sendo, por isso, já uma perda).

É baloiçar na música [16]:

“A onda do mar leva
A onda do mar traz
Quem vem pra beira do mar, ai
Nunca mais quer voltar”





[1] frase atribuída a Simone Weil, alegadamente numa carta a Joë Bousquet de 13 de Abril de 1942. O conceito de atenção encontra-se disperso ao longo dos seus vários escritos. Neste ensaio foram principalmente considerados “Reflections on the Right Use of School Studies with a View to the Love of God” em Wating for God e “Simone Weil” da Stanford Encyclopedia of Philosophy.
[2] conceito de Franco Bifo Berardi, em Crónicas da Psico-deflação, Tigre de Papel (Lisboa, 2020
[3] como Franco Bifo Berardi, em Crónicas da Psico-deflação, Tigre de Papel (Lisboa, 2020)

[4] O tele-trabalho invadindo o mundo privado e quotidiano, a ansiedade produtiva domesticada (arrumações, remodelações, cozinhados, etc), a produção desmedida de webinars e eventos online dissimulando a salvaguarda do conhecimento e da cultura, a capitalização de hobbies (como a loucura da confeção caseira de ”pão artesanal)”.
[5] Por detrás das palmas performativas entre terraços, das mensagens galvanizantes e marketizadas e dos fake-golfinhos nos canais venezianos estiveram a desigualdade interna e global, casos horrendos de ostracização-nojo e a grande insuficiência de entreajuda comunitária e internacional.
[6] No contexto de uma série de encontros-performance que Dazniel Pizamiglio fez (um-para-um) com outras pessoas, após o primeiro confinamento em Lisboa (2020). O desejo era recuperar o encontro e o estar-junto, havendo lugar a um exercício de movimento em que se procurava ativar a instrução “POR FAVOR, OLHAR COMO SE FOSSE A PRIMEIRA E ÚLTIMA VEZ”.
[7] segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
[8] em “Práticas da Atenção: Ensaios de Desterritorialização e Performance Coreográfica” de Silvia Pinto Coelho, Cadernos de Arte e Antropologia, Vol. 7, n° 2/2018, pag. 43-55.
[9] André Barata, O Desligamento do Mundo e a Questão do Humano, Documenta (2020)
[10] ver “O encontro é uma ferida” (excerto da conferência-performance Secalharidade de João Fiadeiro e Fernanda Eugénio), https://ladcor.files.wordpress.com/2013/06/o-encontro-c3a9-uma-ferida.pdf
[11] Wang Wei, “O cume de Hua tzu”, em Habitar o Vazio, ed. Manuel-Silva Terra, Licorn

[12] para uma exploração recente e concisa da história conceptual, cultural e filosófica da melancolia ver Jacky Bowring, The Field Guide to Melancholy, Oldcastle Books (2016)
[13] ver Sigmund Freud, “Mourning and Melancholia”, https://www.sas.upenn.edu/~cavitch/pdf-library/Freud_MourningAndMelancholia.pdf
[14] termo emprestado de Mário Moura
[15] Slavoj Žižek, “Melancholy and the Act”, Critical Inquiry

[16] Dorival Caymmi, “Quem vem pra beira do mar”. Faixa 1 em Canções Praieiras.
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